Depois de ler três livros de contos de Sidney Rocha – Matriuska, O destino das metáforas e Guerra de ninguém – fui ao romance Fernanflor. Pouco após o segundo capítulo, notei algo que ainda não tinha percebido nos anteriores (podem estar lá, eu que não havia atentado: a verificar) e que me pareceu um leitmotiv da narrativa de Sidney: a criação de provérbios e ditos que estilizam com uma aura popular sua narrativa, sem que necessariamente sejam meras apropriações ou imitações da linguagem popular. Há grande invenção neles, invenção a serviço da atmosfera narrativa.
Isso é destacado por Gonçalo M. Tavares no seu posfácio, ao afirmar que a narrativa de Sidney é feita de frases claras e límpidas, indo ao que interessa, sem pintar excessos desnecessários, sem construir espaços e tempos que se queiram verossímeis além do que é funcional na linguagem para construção da cena (algo que é característico do próprio Gonçalo). Sidney é nesse romance principalmente um autor de cenas breves, em que o fundo de cena parece sequer existir. Ou melhor, existe, mas não no texto, não no enredo, e sim no infinito entrelaçamento intertextual que Sidney produz com esse universo de frases prontas, ditos e pensamentos proverbiais da cultura popular, reconhecíveis ou não, aspeados ou não, reais ou não, originais ou não do autor. Pouco importa.
Por isso, sublinhei alguns:
- “Se o homem é largo e a porta estreita, ou se arromba a porta ou se arromba o homem”
- A raiva é o sibilar dos estados de espírito inferiores.
- Cada dia sem alcançar o topo da montanha é de martírio e fracasso […]
- “O cavalo de corrida não é instituição republicana; o cavalo de trote é o que é”
- “As mulheres saudáveis têm o gene da alegria”
- Mulheres e roletas são a fonte da alegria.
- O perfume é o remédio à natureza doente.
- As ruas são pessoas esticadas.
- “Morra, nós cuidamos do resto” [slogan de uma funerária]
- O mundo em si já é uma imagem gasta e falsa.
- Em todo instante há alguém olhando alguém, o mundo é um corpo com bilhões de olhos espreitando.
- “[…] Amar é um plano que se faz”
- “O mundo é esse caos disfarçado”
- “A violência é um gesto político razoável para quem não tem liberdade”
- “[…] tinha o corpo no lugar da alma”
- “Há mais do que golpes na vida. Há a dança do boxeur“
- “A nudez das rainhas tem tudo de infantil e ridículo”
- “O rosto é um espelho”
- “A contemplação vem do Outro. É necessário ócio para contemplar o Outro”
- “A loba, a leoa e a tigresa têm o memso nome, de mulher: Salomé”
- “Não há nenhuma ordenação na raiz das coisas do mundo”
- Quem não se engaja já está engajado
- Ao artista de verdade não interessa a coisa, mas a vida da coisa.
- Mesmo as pedras escondem o desejo de terem desejo.
- A chuva chove para cima até o cume das nuvens.
- “Todo retrato é um retrato falado – ou uma imagem que fala”
- A humildade é a melhor arma da vaidade.
- Fotografias são mundos mortos.
- Arma dormindo no coldre.
- Um sono trabalhado por ourives.
- A solidão é desperdício de possibilidades e experiências.
- Mesmo o aço a multidão vence.
- Memória e sonho. Os dois têm os pés enterrados no tempo morto.
- “Só a existência não se partilha”
- “Como pode sofrer tanto por algo que só foi talvez?”
- “Ele era quem era possível ser”
- Pela porta passam tanto o plebeu quanto o príncipe André.
- “‘Tenham de mim a boa lembrança’, disse São Narciso de Jerusalém”
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