Segue abaixo o ensaio que li no Congresso da
ABRAPLIP em Salvador. É o recorte de um texto bem maior que escrevi e será publicado no final do ano na Revista Quinto Império (Gabinete Português de Leitura/Salvador), sobre Luiza Neto Jorge.
***
A assinatura é o ato discursivo por excelência, que projeta na escrita (e é assim que se convenciona) a presença plena do sujeito, do ato de inscrição do sujeito, sua marca “pessoal e intransferível”. Mas – se toda assinatura escrita é a marca de uma presença performatizada legalmente na ausência do seu dono; se uma presença logra prolongar-se sob a forma enigmática da assinatura; se a assinatura é uma “forma transcendental da permanência” (Limited Inc, Derrida, 1991, 31) – onde então achar a assinatura de um poeta num livro que ainda se encontrava inconcluso na hora da sua morte, como é o caso de A lume, de Luiza Neto Jorge, publicado em 1989? Simplesmente no nome da capa? Minha percepção da assinatura de Luiza parte da noção derridiana de que a literatura é uma instituição desconstrutora de todo fundamento institucional, de toda forma institucional de presença, de toda assinatura, pois o valor do traço escrito na literatura age como contra-assinatura, estando o sujeito presente através de outras marcas que não as que o institucionalizam social e legalmente. Pesquisar a contra-assinatura literária é avaliar os caminhos pelos quais uma escrita é feita de força, nas inscrições efetivamente marcadas pela força do punho sobre o suporte, pela presença transportada do próprio corpo do poeta.
Daí que minha aposta aqui é de que Luiza intitulou seu livro póstumo com sua contra-assinatura literária, nome próprio contra-assinado “a lume”. A expressão – “A lume” – está presente no livro numa pequena quadra sem título, na qual se lê:
Vi num traço a lume oposto
ao ponteiro das horas
a cauda de um fóssil
varrer o céu (A lume, 1989, p. 53)
Esse lume reluz na poesia de Luiza ao longo de praticamente toda a sua obra. Pensemos nos lírios de “Balada Apócrifa” (Sítios sitiados, 1973, 37), na sua estréia em Poesia 61, que são lírios do campo, de pedra, de água, do tempo e finalmente do corpo; pensemos na magnólia do poema homônimo, no livro de 1967, O seu a seu tempo, misto de palavra, flor, puro som, aroma, “magnífico relâmpago” e nome próprio; pensemos nos diversos sítios de Sítios sitiados, de 1973; pensemos ainda nos recantos, que são dezanove, mas que vêm de antes e se estendem para depois da sua publicação em 1969. É exatamente diante dessas luminescências que pesquiso onde é possível encontrar as contra-assinaturas de Luiza, seus outros nomes, seus nomes literários. Com que nomes ela assina sua presença-ausência.
Para os fins aqui pretendidos, leio o “traço a lume” do quarteto como uma atualização “final” (porque póstuma) do “traço de alarme” do poema de abertura do livro Terra imóvel, de 1964, intitulado justamente “O poema” (Sítios sitiados, 1973, 47), bem como também o leio como uma atualização dos lírios, da magnólia, dos sítios e dos recantos espalhados pela sua obra. Escolha aparentemente arbitrária da contra-assinatura de Luiza (como “alarme” e “a lume”), mas só aparentemente. Leiamos “O poema”:
Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme (Sítios sitiados, 1973, 47)
Esta pequena peça parece escrita como uma aposta que mescla voluntariamente a percepção do que é corpo e do que é texto e torna a metáfora de “corpo textual” menor diante do comprometimento do sujeito no poema. Nele, corpo e poema se plasmam como o mesmo gesto; “duelo”, “dedo” e “agulha” são análogos entre si e análogos no embate (duelo), na escrita (dedo) e na costura (agulha). A proximidade etimológica para “agudíssimo” e “agulha” só reforça ainda mais a intensidade dessas palavras. No centro discursivo e visual do poema (a segunda das três estrofes), a assunção da natureza agonística dos atos de dizer e viver (“falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta”). “Falo”: seu duplo valor semântico a produzir uma tensão de gêneros (sexuais) e modos (verbais), em que o ato discursivo está decididamente confundido ao universo de poder masculino: é o “falo” que costura “todo o corpo” do sujeito “à garganta // e a esta terra imóvel”; é o falo que faz de todo ato discursivo um ato de subjetivação.
Mas constituir-se pelo próprio sangue é o que Nietzsche cobrava e Luiza experimenta como característica forte. O sangue feminino (“agulha de sangue”?) aparece na “Invocação” dos seus Dezanove recantos, a sustentar o corpo político do Estado: “Eléctrico motor louco, louco navegante, máquina / arborizada / a lançar faíscas pelo mundo / e sangue e seios e cílios sustentando o corpo!” (Sítios sitiados, 1973, 210-1). Sangue derramado por Inês e seus órfãos. Inês: nome próprio que se desmaterializou da história pela morte para se rematerializar como “traço de alarme” em Luiza (dedo a sangrar, como que duela, segurando a agulha da escrita).
Mas em “O poema”, situando-se como diferença entre atos de lutar, escrever e costurar, o sujeito é fundamentalmente o traço: “minha sombra / é um traço de alarme”. Por um lado, ao invés de ser a fonte e origem de cada um dos atos, ao invés de ser o sujeito pleno da intenção e da vontade, o sujeito “Luiza Neto Jorge” tem seu corpo costurado à “terra imóvel”, corpo sujeitado pela história, corpo histórico, portanto. Por outro lado, no entanto, seu também é o corpo da diferença, o corpo diferente, pois o acontecimento que sujeita (e subjetiviza) o corpo feminino é o mesmo que produz a presença em progresso da sua subjetividade, quando (se) escreve sombra. O “traço de alarme” da assombrosa escrita de Luiza atravessa sua poesia acenando para todos os seus leitores desde, pelo menos, esse segundo livro Terra imóvel (1964) até o póstumo A lume (1989). E é desse último que re-lemos: “Vi num traço a lume oposto / ao ponteiro das horas / a cauda de um fóssil / varrer o céu” (A lume, 1989, 53).
***
Podemos avançar nossa leitura de que Luiza intitulou seu último livro com a contra-assinatura do um outro nome próprio, nome literário contra-assinado “a lume”. O nome “Luiza” é “traço a lume” e “traço de alarme”, pois com eles forma alguns dos traços pelos quais se produz como sujeito da enunciação junto ao campo do poder e da lógica da representação política e poética que teimam em se perpetuar como validações da verdade e do sujeito universal – Razões de Estado. O nome “Luiza” reluz no “lume” do “alarme” do nosso tempo – cada vez mais. Mas podia não ser assim, caso Luiza não voltasse atrás no desejo de expiar seu “corpo escasso” sem o lume do seu nome, mas como “Fractura” (título cogitado para o livro póstumo em substituição a A lume, mas que foi retirado e devolvido apenas ao poema que trata muito exatamente da morte):
Despedaça expor esta fractura,
espiar por ela os meus amigos,
fechados vários peitos, várias artérias,
pela máquina morte removidos.
Escritas daninhas: pouca me sinto
para expurgá-las! Em lava aluem,
riscam a lume páginas estremes,
e um braço da tormenta salienta-se nas vagas,
frutífero implanta-se
no seio do nosso corpo escasso.
Membro em viço, irmão braço vem
por dentro semear-nos. (Sítios sitiados, 1989, 13)
O título (“Fractura”) correria o sério risco de debilitar a saúde desse corpo esplendoroso, já tão próximo da morte. Póstumo, então (como o livro), como manter o viço do corpo? Uma resposta possível: assinando-o com seu nome próprio. Mas, se assinatura é “acontecimento que se texta”, numa fórmula de Derrida (Limited Inc, 1991, 47), o nome próprio não é apenas o que se herda dos pais e o que se certifica em cartório. O nome próprio é o que se grafa, se marca, se traça e retraça – sobretudo em literatura: nomes literários, heterônimos, pseudônimos ou anagramas estão aí para prová-lo. O nome próprio é a sombra de um corpo, seus movimentos ágeis, seus gestos precisos, seus atos discursivos de maior assertividade: nome próprio é o “eu traço”, o “eu escrevo”. Essa primeira pessoa do singular aparece transportada em diversos poemas dos livros de Luiza através do instrumento mais poderoso de inscrição do acontecimento poético: a mão.
Presente em inúmeros poemas, a mão sugere a vontade de presença do sujeito escritor como sujeito da enunciação, seu desejo de inscrição e ato de corporificação. Há um poema em “O sítio lido” que afirma anti-romântico “Estremeço. / No coração. / As letras vêm de lá / e da mão” (Sítios sitiados, 1973, 190) e que também faz coro à mão que aparece na abertura de A terra imóvel (1964), “O poema”, que já aqui mostramos, ou melhor, o dedo da mão: “quero eu dizer um dedo / agudíssimo claro”. É, no entanto, no poema “A dívida” que a mão – mais os dedos, agora no plural – fazem sua aparição, sempre rondados pela morte:
(…)
A dívida alastra abre suas asas
leva-me sonhos débeis tudo a tenta
Atrás do meu gesto
a mão sozinha os dedos conspirando
assimétricos
salientes do corpo até a morte
Já hoje os doava se pudesse
Com que arma porém os separar de mim?
(…) (Sítios sitiados, 1973, 79)
O flerte com a “morte”. É isso o que sempre ronda a mão que escreve, pois a escrita traz, no seu limite, a morte de quem a inscreve. Isso vale de forma ainda mais categórica para a assinatura, pois o nome grafado sobreviverá ao gesto de quem o grafou, de quem se assinou, prescindindo da sua presença ali como testemunha do próprio gesto (“atrás do meu gesto / a mão sozinha os dedos conspirando”). Daí o flerte com a “morte”. A morte só existe no corpo, é nele – pelo corpo morto, pelo cadáver – que identificamos sua presença. Estranha presença. Pois que presente é o corpo morto, presente-ausente, corpus, derradeira inscrição, ápice-fim da potência da vida. Se na morte todo sentido cessa, a disseminação dos sentidos atuante na escrita também flerta com a morte, brinca nas suas franjas, mas busca não cair em suas armadilhas.
Ao se brincar de vida e morte do sujeito, sobretudo quando o corpo experimenta os controles advindos da ordem institucional dos discursos, o jogo se torna sério (na verdade, nunca deixa de ser um jogo a sério), e escrever é um gesto que ganha espessura política. Encontramos aí o nome de Luiza Neto Jorge, encontramos aí seu “traço de alarme”, seu “traço a lume”. Como “órfã de Inês”, segundo Jorge da Silveira (Portugal, maio de poesia 61, 1986, p. 164), no jogo a sério da sociedade, ela sabe que deve se recriar, se reinventar, se reescrever. Enfim, se re-nomear para se tornar outra, para existir sempre diferente. E ela sabe que isso é jogar com a “morte”, com a possibilidade da “morte” e também com a sua impossibilidade, ou, por outra via, com o poder de viver, com o poder viver. Escrever lhe fornece, portanto, também chaves para esse poder viver. É em busca dessa “outra mão”, poema de O seu a seu tempo (1967), que Luiza escreve:
(…)
Às vezes como uma cobra
a mão só deixa a pele
e então a verdade surge:
que não há mão por baixo.
A mão para actuar
tem que sofrer as palmas
como um actor no palco
da acção que vai estrear.
Comer, peixe, o seu plâncton
do ar valer-se bebê-lo
ir dentro do mundo e vir
ou ser vírgula soleníssima
numa vida corredia
ou ser tão negra beleza
ou revolta mão de cintura nova
que em tombar, mata. (Sítios sitiados, 1973, 168-9)
A força que o gesto (manual) de escrever imprime sobre a vida é o que lhe dá sentido, é o que inventa o sujeito e lhe dá um nome. Mesmo quando “a verdade surge: / que não há mão por baixo”, a mão deve continuar a “actuar” para produzir sentido; mesmo quando a morte chega e o corpo morre, ele permanece nas inscrições e nas marcas que imprimiu sobre o mundo: assinatura, “mão de cintura nova”. Por isso descordo um pouco da percepção poética de que em A lume lemos uma Luiza com a saúde prejudicada pela doença. A mão que escreve sempre flerta com a morte para afirmar a vida. Finalmente, então, se debruça sobre o corpo para além do próprio corpo, o corpo na “mão” e nos “dedos” “salientes do corpo até a morte”, na assinatura do nome próprio, não o nome de herança, não o nome de família, não o nome dado pelos pais, mas o nome que se grafa pela força do próprio punho e da própria vontade sobre o mundo. Esse nome, Luiza o assina não no final, mas no começo, à maneira de título: A lume. Antes disso, porém, já o havia feito de outra forma, em “SO-NETO JORGE, Luiza”.
A forma de referência bibliográfica dada ao título ajuda a ressaltar seus sobrenomes de extração e herança masculina. Indecidível assinatura, pois que transgride ao mesmo tempo em que reforça a lei e a interdição, tal como Georges Bataille pensa o erotismo: “derrubar uma barreira é em si algo sedutor; o ato proibido ganha um sentido que não possuía” (O erotismo, 2004, 75). É a norma e o limite que proporcionam o sentido da transgressão, da criação e da mudança. Ao assinar o poema sob a forma de referência bibliográfica justo ao seu título, Luiza coloca-se sujeita à lei dos homens (e dos livros), mas ao mesmo tempo coloca-se em diferença – não sozinha, mas solitária (“SO”) – e também coloca-se dentro da política desse jogo
A silabar que o poema é estulto
o amado abre os dentes e eu deslizo;
sismos, orgasmos tremem-lhe o olhar
enquanto eu, quase a rimar, exulto
(…) (Sítios sitiados, 1973, 255)
Corpo liso porque erótico, corpo da escrita que – sabe – será transformado em livro, mas que é traço com a força da própria mão, deixando marcada sua ausência-presença, seu grafismo, seu corpo não sozinho, mas só.
Sandro Ornellas