Em 2007, li o livro de contos de Gustavo Rios, O amor é uma coisa feia, e escrevi uma resenha de que gosto muito. Foi a primeira tentativa de reflexão que fiz sobre o gênero masculino e alguns dos seus impasses e condicionamentos. Nada muito sofisticado, mas reproduzo abaixo a resenha.
***
O AMOR É CRUEL COM OS HOMENS
Dois excelentes filmes do último ano, coincidentemente, trouxeram em seus enredos semelhanças que convém sublinhar: Flores partidas, de Jim Jarmusch, e Estrela solitária, de Wim Wenders, falam de homens de meia-idade em uma incontrolável crise, que os faz partir para tentar recuperar o irrecuperável dos seus passados. Ambos os diretores têm uma ligação lá no começo da carreira de Jarmusch, que teve seu primeiro longa feito com a ajuda financeira do alemão. Ambos me fizeram pensar em como a vida tem uma dureza muito particularmente cruel com os homens, e como isso passa desapercebido em tempos de valorização e políticas públicas para minorias. Homens que, com as transformações contemporâneas nas formas de afeto, ficam ruminando em seus silêncios, em seus corações e em seus corpos empedernidos uma rudeza gigantesca, uma culpa despedaçada e um espaço inexistente para a expressão autêntica da angústia e da alegria: “porque homem não chora, nem mostra demais os dentes quando ri”. Angústia e alegria são despertadas das formas mais insuspeitas e inusitadas: por uma carta anunciando a existência de um filho até então desconhecido com uma mulher de quem não se lembra, das muitas mulheres que se teve ao longo da vida, no filme de Jarmusch, ou de uma incontrolável vontade de voltar no tempo e recuperar vínculos que na verdade jamais se estabeleceram, mas que poderiam ter sido criados, recriando o que nunca houve, no filme de Wenders. São filmes de homens que fugiram o tempo todo de suas vidas da chance de amar, por não saberem como lidar com esse sentimento. E que num dado momento se tocam de que esse sentimento estranho lhes é fundamental. O que fazer? Como amar?
Escrevo esse parágrafo movido pela leitura do livro do baiano Gustavo Rios, O amor é uma coisa feia, publicado este ano na Coleção Rocinante, da Editora 7 Letras. “É isso o que as pessoas ao meu redor chamam de amor adulto. Esse troço amaldiçoado e carregado de tristeza e desencontros”, diz o narrador de um conto de Gustavo, “O fim do meu primeiro amor adulto”. Os seus personagens estão no que podemos chamar de idade adulta, a exprimir um irrefreável sentimento de perda da juventude, uma desesperança diante dos sonhos frustrados e da chegada a uma época e a uma fase da vida terrivelmente monótona, cínica e cruel. Mas, ainda assim, esses personagens amam com todas as suas forças, nos limites das forças, amam até a própria força que possuem para amar.
Gustavo mostra um outro lado da relação masculina com a violência no mundo. Mostra uma violência masculina contra as mulheres, sim, mas também uma violência masculina contra si mesmo e contra o mundo. Não nos enganemos, todavia, pois Gustavo Rios não escreve qualquer tratado acadêmico, qualquer literatura de cunho histórico ou análise psicológica do homem moderno. Seu tema é o tema por excelência da literatura, o amor, e sua linguagem é de uma simplicidade e singeleza que muitas vezes se torna cruel, e, pela sua assertividade, torna cruel o próprio amor. O desnecessário, o ornamental, o floreado, o rebuscamento são peremptoriamente limados da escrita. Há nítidas elipses narrativas, abdica-se deliberadamente em bloco do que não é sentido como fundamental para a exposição do estritamente necessário. Essa talvez seja uma palavra importante: necessidade. Não ao jeito de um anacrônico naturalismo oitocentista que perseguia uma necessidade animalizada nos homens, mas ao jeito de um estilo que busca eliminar o artifício auto-reflexivo, o artifício que avulta, excede, se exibe vaidoso e não se mostra como entranhado na experiência radical do sujeito. Textos curtos, personagens delimitados, enredos velozes. A voz que narra os contos, os personagens que por eles trafegam, agem, falam e sentem parecem ser os mesmos, até quando são mulheres; a pegada estilística de Gustavo permanece presente, urgente e homogênea, não faz qualquer tipo de concessão à variação e à polifonia. Até por que não há espaço, nem tempo, para isso. Respira-se fundo, mergulha-se e se vai até o fim, ou rejeita-se de pronto. Aqui não há lugar para bom-mocismo, ainda que esperanças (frustradas) atravessem suas histórias.
Não, o amor não é privilégio das mulheres nesse livro de Gustavo Rios. Ao contrário, o amor é coisa de homens (e uma coisa feia), com seus modos rudes, sua imaturidade inata, sua ingenuidade tocante, sua melancolia e frágil desesperança. A violência tipicamente masculina por tudo isso também se faz presente; mas não ao modo da hiperviolência muito em moda em filmes e livros contemporâneos. A violência masculina no livro de Gustavo Rios é reação a uma impotência, junto a si e ao mundo. A si como silêncio “educado” a que todo homem se submete, calando sobre seus sentimentos em nome da necessidade de ser “homem”, com compromissos, responsável, bem sucedido (ou com pretensões de sê-lo), empregado, que garanta afetiva, moral e financeiramente a si e sua família. Ao mundo, pelo brutalismo com que é simplesmente rejeitado e descartado, caso nada disso seja minimamente conquistado.
A despeito das aparências que socialmente soem ser ditas e repetidas como verdades verdadeiras, e que historicamente são verdades verdadeiríssimas, os homens nos contos de Gustavo Rios são seres frágeis, fragilíssimos; e como são duras as suas vidas, como a sua arrogância desesperada diante da vida que lhes é imposta os faz cometer atos da mais absoluta paixão, alucinação e, às vezes, estupidez. E, ao mesmo tempo, quanto amor têm para dar – e não sabem como fazê-lo! O amor é uma coisa feia porque faz sofrer, porque escorre por entre os dedos da mão que se fecha para agarrá-lo com todas as forças, com toda a paixão possível. E por ele homens cometem barbaridades, como no conto “Mon Amour”, quando um Natanael, ao ser trocado pela mulher amada por um outro, compra uma arma e comete o mais cotidiano e injustificável dos gestos de amor masculino: a mata. Ao ver o cadáver no chão, Nataneal constata, para o espanto do seu sentimento vingativo – que afinal não fora nem nunca será vingado – que naquele corpo que lhe era tão querido, tão amado, “não havia sangue. Havia purpurina”. Lirismo e crueldade se misturam em muitas dessas narrativas. Mas nada de muito extravagante. Só o necessário, o direto, o mais comum dos eventos mais comuns, com sua barbaridade, seu espanto, sua beleza e violência. Nada de amor romântico, mas o amor cruel que os homens só são capazes de sentir. Desesperados.