Eis um nome decisivo (e já histórico) para a atual poesia portuguesa: Joaquim Manuel Magalhães. Crítico e poeta, deslocou decisivamente os sabores modernistas reavivadas nos anos 50-60 por nomes peso-pesados como Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz e Luiza Neto Jorge. Mesmo Herberto Helder, tendo por este, todavia, um respeito evidente. Está certo que sua excepcional crítica tem um senso valorativo profundamente idiossincrático, mas qual grande artista não é profundamente idiossincrático, sobretudo quando com absoluta convicção e argumentos nega sê-lo.
Os poemas a seguir, retirados de Consequência do lugar, de 1974, seu primeiro livro depois dos “Poemas” do Grupo Cartucho, possuem a inflexão alegórica presente no esforço em comunicar algo que parece se perder, ou já está perdido, e a melancolia pela passagem do tempo, história arruinada, e consequente perda de algo. A leitura em perspectiva desse livro e do atual Um toldo vermelho, de 2010 — que tanto quiproquó causou por editar todos os seus livros anteriores, reescrever profundamente os poemas escolhidos para permanecer e riscar da sua bibliografia todo o resto — soa também como alegoria de uma geração. Como se não bastasse, ele optou por uma dicção poética cheia de elipses, flertando com aquela que tanto combateu.
…
Rosa dos dias com o sol
com os elementos simples,
desces a este plano sem palavras
eu fico coberto por uma dura luz
esperando teu perfume que já não tens.
Tudo é memória e impossível futuro.
Rosa, flor marcada pela boca
com que invoco o tempo justo
onde nascia esperança
e animais traziam o alimento da vida.
Pouca coisa resta, rosa cortada,
da alegria, dos altos pássaros.
Dividiram tuas pétalas, tua cor foi secada
por vozes sem nome
que tu própria ou eu ajudei
a sair das pedras sobre a terra.
Ficas hoje suspensa sobre os musgos,
sobre os bichos rasteiros, ó flor.
…
Ninguém entenderá este, nem tu,
desperdício de obscuras palavras.
Poucos saberão encontrar a água
entre os olhares escondidos.
Os livros pousados entre as madeiras
dos móveis, velhos e que só eu li.
Narro para ti uma cidade que existe
e transfiguro,
a imagem de um corpo banhado por um rosto.
Procuro palavras para te contar
entre este vivo pressentimento de não ter história.
Tu vês o que vês?
Tu falas para mim com as palavras
com que para mim tentas falar?
A cidade desaparece na cidade.
O amor, no amor. Um rio,
noutro rio que ninguém vê passando.
…
Trabalharão com as palavras que lhes deixas.
Perguntarão os sentidos.
Ninguém mais escutará tua voz como tu a ouviste.
Assim errando falarão de ti.
[Joaquim Manuel Magalhães. Consequência do lugar. Lisboa, Moraes Editores, 1974]