uma canção me alcança na rua
uma premonição sempre afiança
o campo de gravidade do corpo
uma premonição a gentes e afetos
e me deparo com o risco de crime
o risco do mote que nada diz
o risco que nada fala ao labirinto
de sonho e violência desse país
escrever poesia não traz salvação
ela é só antessala ao que existe
apesar de a thing of beauty
que em algumas insiste
ela é só um rumor de sombras
ou a vida lançando suas bombas
ela não professa nenhuma fé
atriz de si mesma é parte da ralé
atriz de si mesma ergue-se em heráldico balé
mas toda poesia é forno crematório
por isso amigo repito
é falida a verdade dessa dádiva
acordo e questiono o que resta
de dignidade matutina em mim
a vida se acostuma à terra em festa
imita o voo dos insetos
como jardim de sem-tetos
e nós moramos em casas
sem cheiro do que fora se passa
no canto mais sórdido das grades
despejamos resíduos que nos ardem
e esperamos que deus ou a vida orgânica
elimine essa exasperação pânica
só o que existe (talvez não seja tão ruim)
rasteja por aí a começar mim
que risco essas folhas brancas de carmim
mas merda! sempre penso num pequeno canto
no fim do mundo só um pequeno canto
no fim de tudo e não me pergunto
como estão as coisas todas
se desfeitas feias rotas
como estão as coisas aqui
nos confins desse país
(aos dezessete de outubro de dois mil e onze)
como se costuma ver o mundo daqui
com tanto risco e pouco viço
mas merda! a sua vida poeta
e não há quem não repita
parece uma fuga do mar
para no esgoto se lançar
ouvi dizer que são tempos de mudança
em que a vida dança na mesa como barco à deriva
no oceano insano da própria cabeça
ouvi dizer que são tempos de guerrilha
como o ar que se respira
que o importante é ser ilha
pedaço de terra cercado de guerra por todos os lados
mas essa vida anestesia como a fome
ela é pesadelo que perdura
nos fundos dos bolsos insones
é migalha sem fatura a poesia poeta?
falo da pequena vida com seus acidentes
vida que passa
vida em que passa um casal sem parentes
vida que sai no vento e se perde
sai no vento e percebe
um crepitar de espinhos ao relento
e isso dói meu desespero
pois a vida é sempre muito rente e não tenho mais
a ânsia de outrora de plantar qualquer semente
mas que se exploda!
minha sanha é mover-me contra mim mesmo
preparar minha própria carne para o braseiro
deixar ir meus dedos juntos com os anéis
com que edulcoro estes papéis
olhos presos no abismo sob meus pés
(essa dor aguda fere quem vive muito junto)
mas há sim ainda o colo de uma mulher
me envolvem o sorriso de seda
os pelos de linho a saia de cambraia
e ergo brindes à alegria!
e me toco porque evoco a poesia
e luto por seu luxo de maravilha
me toma essa imensidão
me abraçam esses braços vãos
me alça a violência da paixão
onde pasto meu poema e onde visto vastidão
então acostumado ao crime largo o martelo
na pedra e no ferro desse chão
largo o martelo que me torna este cego
largo o martelo ao seu próprio inferno
e me alimento dos amantes eternos
todo martelo é fim dos dias quentes
todo martelo grita alto e frenético
e desfaz destrói humanidades
com o brilho de falso diamantes
mulheres encostam os filhos às pernas
e abrem o espírito amorável
pés pisam na sarça que dança
e me fazem animal de confiança
só assim espero vir me destruir o verão
com sua violência de amor
Lindo, Sandro! Absurdamente lindo!