Lupeu Lacerda, caminho com você por Juazeiro
cruzando a ponte Presidente Dutra,
e tocamos a alma um do outro
enquanto sobrevoamos o Grande Rio
que une as duas cidades
em sua pesada travessia conosco.
Você, filho perdido do Crato e de Creta,
você, aos gritos incontidos na rodoviária,
desfiando numa enfiada seu cordel demoníaco,
você, preparando essa jornada
pelo horizonte imantado de barro e sol,
você, gesticulando nervuras
só apaziguadas por suas filhas
– anjos que te afiançam como homem –
e por sua mãe, que te afiançava
como anjo solitário sobrevoando os céus nordestinos,
cheio de perfumes e espinhos,
prontos para voarem sobre os fiéis da ordem.
Então apertamos as mãos bebendo cervejas milagrosas
e pesquisamos o Azimute em nossos olhos
e nos banhamos no calor encarniçado
que cresta a flor da pele,
sendo a sua de uma pureza que resiste
aos sóis que despontam em seus poros.
Arremessamos canções e poemas
de uma margem à outra daquele ovíparo rio
como quem arremessa a própria alma neófita,
e salivamos ao lambermos os chifres do bode
que encontramos na viagem
que até ali nos levou
e que depois devoraríamos em sacrifício,
matando a nós mesmos como santos que somos
pela alma de um deus pagão,
e depois também devoraríamos
cachorros-quentes mitológicos
sob aquela ponte imóvel e senhorial,
enquanto praticávamos a arte da bibliomancia
como antigos bardos gnósticos costumavam
antes de alguma sangrenta guerra.
Multiplicaríamos inocentes peixes sem sal
porque não precisávamos de sal,
pois suávamos e éramos assaltados pelo céu do horizonte
e bebíamos e falávamos e cantávamos
hinos em nome do encontro iluminado
que o Grande Rio testemunhava.
Estavam muitos outros – santos como nós –
percorrendo o Sertão enquanto nos tornávamos
lagartos sobreviventes ao deserto.
Carregávamos Cazé nos bolsos
que também ali gostaria de estar e realmente estava,
pois nascera na preta terra da pedra petropolitana,
e honraria seu sangue nômade ao migrar
por cidades levando debaixo do braço
o seu Redespertar de Finn no semiárido branco da gota.
E havia Gustavo trazendo equilibrado
em sua esplêndida cabeça o sinal
dado por você na idade em que todos
enlouquecemos e vamos para o deserto
encontrar nossos demônios mais familiares,
para depois sair com suas facas e receitas
pelas cozinhas do cão que ficam entre o teto do mundo
e a casa de máquinas de navios piratas,
e que ainda cruzam os sonhos dele,
mesmo hoje ainda quando participa
da dança canibal dos bancos.
E havia Lima, que já fora Valdo e antes Vivaldo,
mas agora é a árvore mais frondosa deste quintal,
com Jean Genet nos bolsas da calça
e por trás dos olhos treinados nos subterrâneos do Conic.
Lupeu Lacerda, caminho com você por Juazeiro
cruzando a ponte Presidente Dutra,
e ouvimos Helter Skelter com o coração
explodindo as pilastras de sustentação do mundo.
E depois caminho com você por Salvador
e bebemos na varanda do apartamento
em que dividimos a solidão ultrapassada dos quarenta,
sabendo o quanto o mundo troca de pele,
mas ainda assim temos esperança
e sonhos de poemas e amores mais poemas
e amores sempre poemas e amores,
enquanto amigos têm esperança de sucesso
no circuito Elizabeth Arden da literatura brasileira
e se pavoneiam com prosas que fariam
as belas travestis do Porto da Barra corar,
mas mesmo assim continuam nossos grandes amigos,
pois reconhecemos seu fraco pelos falsos brilhantes.
Lupeu Lacerda, caminho com você por Juazeiro
cruzando a ponte Presidente Dutra
depois de te encontrar os cabelos como raízes
brotando da terra e buscando o céu,
porque é para lá que viajamos
todos os dias quando nos espantamos.
Lupeu Lacerda, caminho com você por Juazeiro
cruzando a ponte Presidente Dutra,
e nos espantamos com nossas vidas
terríveis e maravilhosas.
Caminho com você e esqueço
a anacrônica profissão que abracei,
cagão da vida agora pronto para o ponto
no terreiro do Caboclo Capiarara que me acompanha e protege,
mas que não te protege, pois você não precisa de proteção.
assim seja!
Que maravilha de declaração de amor fraternal, Sandro. Que poema mais belo e embriagante.
Obrigado, Tom. Ele será publicado, um pouquinho modificado, na revista Organismo, lançada amanhã (17/12/2015).
Forte, belo, sedutor e mágico como um mantra da genuína árvore-Whitman-Ginsberg-Piva-Wally. Todo vida. Dardo negro. Celebração. Vírus. Fúria.