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O sol esboça os primeiros raios, como se do teto outros tetos tombassem, e faz da vida animal desassombrado. O coração nos escombros aflito, velho automóvel às curvas do espírito, ziguezagueia por entre miragens. Fotogramas de um amanhecer excessivo, linhas de um livro ainda não lido, breves canções ouvidas sem fim. São imagens imperfeitas do afeto em nosso peito tão longe e tão perto, nesse velho automóvel pela estrada, sem sinalização, sem luz, sem nada.
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A insinceridade das palavras é confissão aplicada (cf. augustus, r.)
ao espelho, é ferida que não é bem ferida, é floresta de cactos
contra natura, é sonho impossível de um outro sonho. Por isso
poetas fingem fingir, conforme afiançou ruy belo em verso
lido no ensaio de rosa martelo, assim como o homem
amarelo encantou mário, antes de conhecer anita.
Por isso poetas selam a palavra com costura de
ponto e pesponto, em encadernação multi-
colorida. Os rastros acesos com fogo-
-fátuo são arcas carregando muitas
mortes, segredos, grafismos,
formas rupestres, cuja tinta
habita em vários dizeres,
mais e mais rentes ao
passar dos dias.
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O sol despacha os últimos raios, nesse entardecer de assassinatos. Os rostos com olhos fechados sabem a fantasmas mascarados. O sol atrás dos muros, as mãos reunidas em juras de pés juntos são votos quebrados no céu da boca. Mas a palavra no poema não quebra jamais. Calar é sua arte, adubo da decepção, valor de uso em deságio. Palavra – tal qual mercado de pulgas e inutilidades desamparadas, no ócio impróprio e no gesto arruinado de nossas mãos.
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Dizendo com cuidado
essas palavras – ânsia e
expectativa a cada passo, o chão
se movendo sob os pés que reticentes
passam ao largo. Evito a insegurança de dizer
com pura claridade e com certeza o que por natureza
é obscuro e entre amanhecer e entardecer se apaga como
vela soprada. Meio-dia é o trabalho que comanda, e a poesia
é uma outra sorte de esforço, fosso entre o ganha-pão e o ganha-prêmio.
[Sandro Ornellas, de livro inédito]