Todo o sofisticado arsenal de leitura literária desenvolvido no último século e meio pela crítica – um pouco como consequência das altíssimas produções literárias do período, um pouco como incentivadoras delas e muito como parte, com elas, de um mesmo tempo histórico – já teve sua ascensão, auge e decadência (o que foram os métodos do close reading e o estruturalista se não um pouco desse auge e decadência?). Na ressaca quase-pós-tudo, talvez caiba à crítica outras formas de leitura de poesia, menos motivado pela busca por manobras verbais, filosofias e políticas de pacotilha e por referências (ou influências) da tradição. O valor das leituras micrológicas de qualquer texto chegou às salas de aula das escolas há tempos, como as “exemplares” leituras de figuras de linguagem em textos isolados, associadas frouxamente a banais recortes históricos, resultando nos indefectíveis “movimentos”, “escolas” e “estilos de época”, uns opostos “dialeticamente” aos outros. E isso só criou estereótipos e afastou leitores potenciais dos livros. Um poema isolado do seu livro faz tanto sentido quanto um capítulo isolado de um romance: é um texto exemplar, mas um discurso manco.
Das estéticas modernas, o realismo sugere ter sido o mais bem sucedido. Ingênuo ou não, com pitadas de cliches românticos ou não (vide as telenovelas), a necessidade no nosso tempo de realismo (representação com referências reconhecíveis, fidelidade à realidade, objetividade, sociologismo, etc.) me parece se dever sobretudo à retórica dos mass media em vender um discurso transparente. Desde o jornais e seu fotojornalismo-prova-de-investigações-imparciais, passando pelo cinema hollywoodiano, até o Youtube e seus “flagrantes da vida real“, todos repetem que uma imagem vale mais do que mil palavras, que uma imagem jamais é uma representação diversa do acontecimento que lhe é anterior. Ditadura do realismo? Não sei. Mas sei que é uma derrota da imaginação.
Onde hoje então o lugar capaz de devolver à imaginação algum valor, para além do realismo de escola, para além do próprio desencanto da literatura? A crítica ressurge, então, como plenamente capaz de pedagogicamente reabilitar a imaginação do público-leitor-espectador-cidadão-consumidor-etc, de devolver a imaginação ao espaço público contemporâneo. Mas para isso é necessário uma crítica imaginativa, menos amparada em tradições literárias e mais livre para (fazer o leitor) imaginar. Uma crítica que se comunique com o leitor, que leia como o leitor de hoje, destituído do peso enorme da tradição (mais impressionista) e das teorias (mais acadêmica). Uma crítica que compartilhe com o leitor potencial o possível prazer de ler, seus lugares-comuns, e que não tenha na leitura nenhuma espécie de tábua de salvação, de gesto messiânico. Mas apenas um gesto alternativo aos gestos dominantes. Diminuir a presença, a prevalência, o ponto de vista e a força do gesto do autor na leitura de um livro e se dedicar mais à fruição (cf. Barthes, O prazer do texto) e à imaginação leitora talvez sejam os gestos mais eficazes para que a escrita literária não tenha o seu sentido cada vez mais encolhido no mundo.
O sabor será sempre vencido pelo poder, como a vida é vencida pela morte. Mas meu partido é o da vida.
Fiquei a pensar em Derrida: o desfronteiramento, nem a tradição nem o academicismo, nem uma coisa nem outra. Isto é, a busca de um meio termo para a crítica é um desejo que não se realizará nunca. É utópico, não esquecer que, etimologicamente, utopia é um lugar que não existe. Não esquecer também que a chamada crítica impressionista tentou e conseguiu muitas vezes a ponte entre texto e leitor com o intento da fruição. Porém, vc está certíssimo de que a imaginação levou golpes demais, sou a favor também de uma crítica que a regenere. Gostei do seu texto, grande texto. Abraços do Daniel.