Arrisco que um dos operadores mais completos (e antiqüíssimo, por sinal) para se navegar bem pela cultura contemporânea e seus discursos hiperrealistas, neonaturalistas, citacionais, diluidores, pós-, re-, trans-, meta-, etc. é a alegoria. A crítica portuguesa Rosa Maria Martelo já apontou o retorno da alegoria na poesia portuguesa contemporânea, cheia de poemas em prosa e melancólicas narrativas em verso (acho uma percepção também válida para a poesia brasileira desde os anos 1970), assim como o crítico de arte norte-americano Craig Owens, aqui e ali, ligou a alegoria à arte pós-moderna dos anos 70 e 80, fazendo um histórico muito interessante da questão no século XIX francês.
O fato é que a alegoria, além de não pertencer ao aparato mais prestigiado da crítica nos séculos XIX e XX, não interessava a boa parte dos artistas modernos, que fugiam da representação como o diabo foge da cruz – o que não é uma analogia inocente. A alegoria não tem como se desvincular do pensamento mimético, que é o que parece regressar de alguma forma na arte e cultura contemporânea com força – imagens, imagens, imagens. Mesmo formas e práticas artísticas radicalmente anti-miméticas como as das vanguardas do início do século XX acabaram por ser lidas como alegorias históricas. Tornaram-se alegorias com o passar do tempo, na verdade, sendo assimiladas à história e à escola. Há algo de íntimo entre alegoria, representação e memória que dita o perfil de muito do que se diz, se pensa e se faz hoje em dia. O “realismo” estético, sobre o qual esbocei dizer algo, aliás, parece surgir desse cruzamento. Lembro então que para o crítico de arte Hal Foster o hiperrealismo contemporâneo é uma forma de violência alegórica que descende diretamente da pop art. Basta ver as imagens de Kepa Garraza e comparar com certos escritores e diretores contemporâneos (alguém pensou no cinema brasileiro?). Mas a violência também é outra.
Se a grande tradição da arte moderna foi a da fragmentação, da abstração e da impessoalidade, a arte contemporânea parece tomar caminhos que foram durante muito tempo considerados menores, conservadores, tradicionais e até mesmo reacionários para o projeto total da modernidade. É aí que me parece entrar a alegoria, entendida como figura de pensamento, como um impulso a uma forma de pensar e compartilhar referenciais i-mediatos – reais ou imaginários, pouco importa – que apontam para um tempo mais frágil, um tempo que se arruína e se perde, um tempo que morre e se refaz precariamente como memória – o Angelus Novus de Klee interpretado por Benjamin. Nada mais próximo de como lidamos hoje com a memória histórica. Nada mais próximo das sociedades atuais desde o pós-guerra, com suas retomadas (neo-vanguardas nos anos 50-60, neo-modernismos nos anos 70, revivals, etc.). O fim do ideal de sujeito emancipado, de razão universal, de utopia social – assim como de uma arte – parece ter implicado na catástrofe, na descida ao tempo social e às suas representações sob forma de alegorias. Cada qual com sua memória da catástrofe.
É o que me sugerem os dois poemas abaixo, respectivamente do português Manuel de Freitas e do brasileiro Dirceu Villa:
PICO DE ANA FERREIRA
I
Dizem que Ana Ferreira, bastarda
del-rei Dom João II,
ganhou estas terras – e o Pico
que lhe preserva o nome –
em proveito da sua muita fome
e de umas jóias enterradas que leixou
– pensando talvez na vaga descendência,
na breve fantasia, dos que aos seus dias
traziam costeletas de borrego,
súbditos melões e uvas da Calheta.
Um tempo de dura escassez, mas preferível,
ainda assim, à barbárie do bem-estar
e aos fossos da democracia. Quando
a ilha era o mais surdo dos desertos
e o clavicórdio – roído por ratos,
intempéries e desgostos –
já não podia iludir tão alto desterro.
II
Verdade ou mentira (quem saberá
dizê-lo?), parece que a montanha cresceu
em honra e luto de Ana Ferreira.
Tubos de um inexistente órgão vieram
redimir as puídas teclas de madeira
onde à noite procurava o esquecimento
(e tornaram-se, como o coração, de pedra).
Do lado Norte, uma caveira faz-nos
recordar a brevidade de todos os tesouros,
o silêncio de um mar que condenou
Ana Ferreira a ser lembrança de areia,
carne votiva que el-rei pôs em sossego.
III
Lembrei-me disto tudo hoje, ao almoçar
na Adega das Levadas, enquanto
chovia e não chovia nas encostas de Morenos.
Não acredito em tesouros, nunca fiz
caso da história. Mas sei que, do alto
do seu Pico, Ana Ferreira me contempla
terna e vagarosamente pela tarde dentro,
pela morte fora. E tem, como eu,
a súbita beleza das coisas que não existem.
OS MENDIGOS
Eles imploram diante dos carros,
vivem como ratos nas vias expressas;
erguem barracos entre as árvores
secas de poluição, com mãos esqueléticas.
O sabor da fuligem, o espesso cinzento
dos escapamentos de metal fervente
direto no rosto com fendas de calor:
arrastam trapos que fedem a excremento.
Crianças com cabelos emplastrados;
que olhares mortais na doçura redonda
do rosto! Têm dentes que fraturam um osso.
À noite as calçadas bebem seus corpos,
vultos das bocas de lobo e esgotos;
bêbados dormem, coçam os escrotos.