Fala-se muito em resistência nos últimos tempos. A ponto de a estarem conceitualmente esvaziando. Aguardo para breve alguma propaganda da Coca-Cola ou da Levi´s usando-a como palavra-chave.
É no Abecedário que Gilles Deleuze dá a deixa sobre “resistência” na letra “r”: “resistir é liberar uma potência de vida”. Detendo-me na palavra “potência” (outra que se tornou clichê de nossas infovias), cabe salientar que ela não é nem nunca foi a mesma coisa que poder. De matriz aristotélica, a potência (dynamis) faz par com o ato (ergon), migrando, por exemplo, ao vocabulário tomista, a Espinosa, chegando Nietzsche a aos pós-nietzscheanos do século XX e XXI. Mas só tangencialmente a potência se confunde com o poder quando passa ao ato. E ela de alguma forma sempre o faz, mas ao fazê-lo dispersa-se na energeia (“obra-em-ato“), que é a força que o poder exerce sobre os corpos, sujeitando-os por dispositivos de controle. Ou seja, a potência cria a força, mas a força não tem potência, só poder.
Daí que “liberar uma potência de vida” jamais fará da resistência nem uma gesto subversivo nem transgressor, pois ambos têm um verdadeiro fetiche pelo poder. Vejamos.
Toda subversão age por dentro da lógica instituída da lei e do poder, por dentro como em segredo, sob várias codificações de língua e de gestos, guardando a força de tomar bruscamente a lei e o poder e instituindo-os em benefício das próprias ideias julgadas legítimas. Há o desejo de uma nova ordem e ordenamento subtendido no conceito de subversão. Por isso, inverter o comando da lei e o poder não é “liberação de uma potência de vida”, mas uma mesma força – que se quer autorizada e institucionalizável em atos – só que nas mãos julgadas melhores e mais legítimas. A mesma soberania do poder e da força de lei, só que com nova roupagem exigindo cobrir-se o corpo nu. Esquematizando bastante, poderíamos chamar de resistência autoritária.
Toda transgressão age rompendo os limites da lei e do poder, saindo do seu alcance em direção ao lado de fora dos limites institucionais. Por isso, o transgressor pode ser chamado de fora-da-lei (jurídica ou moral). Sabendo disso, só lhe resta fugir ou ser capturado e julgado “culpado” – condenado à prisão e à expiação da consciência (sua e dos outros). Por isso, também, não pode haver liberação de uma potência, já que toda transgressão é paradoxalmente a afirmação da lei transgredida, um jeito de reforçá-la na sua ação legítima enquanto asseguradora de ordem – subjetiva, moral e social. Esquematicamente a chamamos de resistência auto-martirizante.
Só resta cogitar a profanação da lei e do poder como forma de resistência, pois o ato de profanar retira a “coisa” profanada de um lugar de culto, controlada por normas, leis e ritos de consagração (na subversão, há um elogio da força da minha lei; na transgressão, há um elogio paradoxal da lei em uso). Mas na profanação abole-se a atuação punitiva da lei, a “coisa” é usada de modo destituído de fim e de essência (geralmente regulados pela norma ou lei), devolvendo-a ao âmbito profano da vida comum, dessacralizada e sem idolos. Aí encontra-se a potência politica de uma vida liberada de leis punitivas, moral e jurídicamente, que dizem o que ela “deve ser”. Devolve-se à vida uma força própria dela, a força que é a de viver, não a força que é a de poder. Chamaríamos, ainda no esquema, de resistência da vida.
Adendo (07/06, 08:35): por isso, considero subversão e transgressão formas conservadoras de lutar e resistir.
Qual sua resistência, bebê?