Cortesanias é terceiro livro de poemas de Rita Santana, autora também de um livro de contos, sua estreia. Lançado em 2019 pela Caramurê, não é uma simples recolha antológica de poemas, mas um discurso com grande unidade, até nas suas variações. Dividido em três partes – “Afrescos”, “Nebulosas” e “Cortesanias” – cada uma está muito bem delimitada pela escolha dos poemas, ao mesmo tempo em que dialoga com as outras duas, num processo de expansão e contração, destaque e discrição temática, idas e vindas que fazem da sua poesia esse jogo de linguagem que demanda participação ativa do leitor para formar seus sentidos.
E nada parece gratuito nos poemas de Cortesanias. Se os títulos das partes já apontam para as linhas de força de cada uma, que eu resumiria por descrições, mistérios e ética, eles estão longe de qualquer limitação ou fechamento, pois Rita tem um modo insinuante e incisivo de desenvolver suas articulações.
A écfrase é a figura retórica maior dos poemas de Cortesanias, pois Rita busca todo o tempo dar a ver ao seu leitor o que sua imaginação lhe mostra. As inúmeras referências a artistas visuais servem como dispositivos verbais para abrir caminhos na imaginação de quem a lê: “verde Pancetti”, “delírios de Chagall”, “desolação de Tarsila”, “urtigas de Pasolini”, “Egon Schiele desponta”, “operários de Tarsila”, “arsenal de Rivera”, “Busco Georgia [O’Keeffe] em meus versos. / Busco Georgia em mim”, “E colho algodões de Anita Malfatti”, “tonalidades de Matisse”, “pintado por Cícero Dias”. Mas esses são apenas dispositivos de exploração, pois Rita sabe ter seu traço próprio para uma “vocação muralista”, fazendo-se “Colorista do Verbo”, criando “vitrais em meus versos”, “azulejaria das Tormentas”, afirmando que “pinto somente o que amo”, “Ocasos sucedem-se em minhas retinas”, “enquadro […] / o recorte de texturas e cores” ou “Apenas fotografo manhãs”, “pinto cerâmicas”, “pinto telas com pigmentos que colho”, “aprendi a plantar cores no quintal” e muito mais. O que temos, portanto, é uma poeta com uma exuberante imaginação visual, consciente desta imaginação e que se esmera em oferecê-la precisa e generosa ao leitor.
Digo precisa, mas não objetiva, pois se a écfrase muitas vezes busca forjar impressão de objetividade, Rita sabe que a imagem traduzida em palavra cava abismos onde os sujeitos se perdem e se acham. Sendo que só há formas inexatas de se dizer com exatidão certas coisas, é nesses abismos que ela vai em busca dos mistérios que a imaginação lhe traz entre cores e nomes: “ócio algum frequenta meus abismos”. Há os mistérios cósmicos de “A lua vermelha” e da “Lua de maio”, bem como os mistérios da criação em “Estado solene de poesia”, “Retrato da artista quando poeta” ou “Sinestesia I”. E há os mistérios da vida em “Magma”, “Outono” e “Promenade”. Todos na verdade são o mesmo mistério, às vezes mais distantes (“Perdi-me entre os astros iluminados”), às vezes mais próximos (“[O outono…] // Desconhece a possibilidade de chuvas. / Ignora a representatividade de Maju, como garota do tempo”). Entre o mistério distante e o próximo, Rita caminha na linha de fronteira entre o sagrado e o profano, às vezes trocando-lhes os sinais, como quem diz: “Outra mulher vive meus dias. / Desabitei-me. // […] // Tornar-se Outra é testemunhar a ressurreição / da carne”.
Mas uma mulher “tornar-se outra” significa que ela se torna uma mulher dona de si mesma. Conquista sua autonomia. Cria seu ethos. Faz sua própria ética. E apesar de certo heroísmo com que esse “tornar-se mulher” é geralmente mostrado na mídia, ele também é fonte de sofrimento, como se sabe. Arrisco dizer que esse misto de heroísmo e sofrimento se verticaliza na poesia de Rita com total expressividade à medida que o livro se aproxima do seu final. Os poemas que condensam essa tópica são “Emparedadas”, “Outras!”, “Públio, o antigo!” e Sôfregos sargaços”: capítulos dessa história de mulheres negras tornando-se autônomas donas de das próprias palavras, definindo-se e, no caso dos poemas de Rita, também mostrando-se.
Talvez por isso Rita não tema o verso longo. Ela precisa de fôlego para dizer tudo, embora jamais descambe para a prosa – prosaica. Entre imagem e som, pintura e ritmo, poesia e pensamento, o cotidiano está também aí, mas como mágica da palavra. “Emparedadas” é um exemplo quando afirma: “Deseduquei-me à força, forca, fornicações / forjadas em literaturas altas, literaturas baixas, literaturas medianas, baixarias, baixo astral, astros, lírios, rios, delírios, delações, delatores, tratores das gentes pretas e pobres e putrefatas, azeite, leite psicossocial, / […]”. A enumeração é só aparentemente a caótica que teorizou Leo Spitzer, pois aí o caos foi vivido e reordenado na busca por uma outra forma de vida, um outro contrato, escrito com outras palavras. Palavras próprias.