poesia de interrupção

Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes é o segundo livro de poemas do próprio Ederval Fernandes, publicado pela Paralelo13S, em 2018. A primeira ideia que me vem da sua leitura é que Ederval escreve para ser lido por todos, sem exceção, mas talvez poucos venham a lê-lo. A contragosto do próprio autor, que sabe disso. Sua língua fala entre uma sutil ironia dos sentidos e uma harmonia dissonante das palavras. A poesia de Ederval como que interrompe a todo momento a discursividade que a linguagem tenta imprimir à escrita, criando intervenções que colocam o poema em suspensão para o leitor. Eu diria que seus poemas se caracterizam pelo esforço em perseguir modos de dizer o que se propõem a dizer, ao mesmo tempo em que colocam em dúvida se a palavra com que dizem é a mais exata.

Um recurso muito presente na poesia de Ederval para tentar essa exatidão é a indexicalidade, dispositivo retórico que aponta, remete, indica, sugere, simula algo (objeto, contexto, pessoa etc.) para além do texto. Vemos esse uso nos poemas pela nomeação e pronominação: “as engrenagens / do coração deste / livro / se unem aos elementos / desta foto, // incluindo esta xícara / de café // e estas coxas / […]”; “a chuva não alaga / ruelas becos favelas / da fala”; e pelo cosmopolitismo das fronteiras linguísticas: “ERES um feixe / um furo / a fish / on a clear water / sem muro”; “Poeta esiliato, Ederval è il nome? /, respondo, / questo è il mio nome”. Só que nesse processo, Ederval suspende o próprio gesto que aponta uma referência mais exata, muitas vezes pela elipse, outras vezes por recursos sonoros ou pela pontuação: “com isto, / isso, aquele / e aquilo outro”; “à noite // como / foice // esse / coice // esse / som // alarde // a / vida // há-de // foi / tarde // mas / foi bom”. Assim, os usos da indexicalidade na sua poesia variam entre a presença “desta foto”, “esta xícara” e “estas coxas” e a ausência de “a / vida // há-de // foi / tarde”.

Se o cosmopolitismo vem majoritariamente pelas referências a Feira de Santana e Portugal, ligados em “Três tristes tópicos” (“Em Feira / podemos identificar / três grandes / formas de tristeza. // A da rua / Aderbal Miranda. / A do conjunto / Feira VI. / E a tristeza portuguesa”), ele também é interrompido pela desreferenciação no exemplo: “[…] / quando voltarmos ao país / ao qual pertencemos. / Mas qual, e quando?”. Já as elipses parecem criar uma dicção entrecortada, a exemplo de “Como quando”, cujo discurso está sempre recomeçando: “Como os dedos”, “Como o café”, “Como o livro”, “Como quando / entrei”, dentre outros. O termo de comparação, no entanto, jamais é explicitado, restando uma lacuna a interromper o fluxo discursivo do poema e criando inúmeras imagens descontínuas para o leitor.

Outros leitores, mais afobados, sacariam logo do bolso a expressão “metapoesia” para definir os textos de Ederval. Quase fiz isso de início, mas não. A autorreflexividade da sua poesia não é metalinguística, pelo menos não à maneira de boa parte das poéticas do século XX que desejavam (sem conseguir) anular o sujeito. Assim como há referencialidade, também há subjetivação e concreção de um eu em seus poemas. Mas a subjetividade parece desfocada, incerta para o próprio sujeito que fala: “Não sou tão nítido / quanto a cidade / e assim sou eu” (penso em como se poderia discorrer sobre estes versos se pensarmos na cidade como local [pólis] por excelência da cultura política contemporânea, em que se exige nitidez e coerência dos sujeitos – até para melhor se controlarem mutuamente). Ou seja: Ederval está nos versos, mas não onde esperamos que esteja. Ele joga esconde-esconde com o leitor (e consigo mesmo?) que queira capturá-lo e afirme que sua poesia é apenas jogo cerebral. Para esses, ele responderia: “se a língua / portuguesa / é pouca, // isto não é / problema? // não aqui, / assim, / no meu poema”. Pois então há calor, sim, mas um calor contido, discreto, nos versos de Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes, que na sua autorreflexividade mostram um sujeito de dúvida, incerto sobre as palavras dizerem as coisas da vida (ou talvez certo do abismo separando linguagem e vida).  

Mas a dúvida não impede que a vida seja dita nos seus versos – inclusive na interrupção por excelência: “Um vacilo / & jaz”, de “Sobre a inspiração”, último poema do livro. Nestes dois únicos versos finais, a inspiração poética arrisca morrer no vacilo de dizer, assim como o jazz, no vacilo de tocar. No entanto, se diz e se toca. E se até a morte está presente em um poema “Sobre a inspiração”, é porque a poesia de Ederval não é simples poesia sobre poesia. A vida mesma é esse jogo de vacilos e interrupções, e diante dela, contemporaneamente, só nos restam duas alternativas: ou assumimos essas ásperas simulações de dúvida (como a leitura de poemas que não nos dão nenhum discurso pronto) ou afundamos nas simulações de discursos precificados (como o “amo ou odeio” das novas sociabilidades).

Faltou falar das harmonias dissonantes do livro, dos usos de ready-mades da oralidade, dos seus versos curtos, dos enjambements, das rimas, ecos e (quase-)homofonias imprevistas que torcem e interrompem um lirismo só esboçado. Mas isso fica para o leitor perceber. Se quiser. E se chegou até aqui.