sobre “em obras”

Prefácio escrito por Tom Correia para EM OBRAS

A reclusão demoníaca de um artista (des)construtor de si mesmo

Quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos,
e toda melancolia do mundo parece subir do sangue
e com a sua voz obscura.
Herberto Helder

Prosadores pertencem a uma das classes mais invejosas que existe, especialmente quando se deparam com o trabalho edificante dos grandes poetas, os autênticos. Por mais que se dediquem à escultura da palavra, são conscientes de que esses malditos bardos são insuperáveis, pois guardam o dom da palavra-andaime de encaixe meticuloso. Do verbo-alicerce ao qual nada sobra e nada falta. Da metáfora-cumeeira que elucida mistérios e nos deslumbra.

Poeta sem afetação e crítico severo do próprio trabalho – cujo canteiro de obras de estreia, Simulações, foi contemplado com o Prêmio Copene de Literatura (1998) –, Sandro Ornellas nos exibe, neste quarto livro individual, um tipo particularíssimo de maturidade. Daquele somente alcançado pelos poetas após cruzada reclusa, dos que se encerram em solitárias fazendo da vida um improviso da própria morte, rastejam no lodaçal da inclemência a que se submetem e refutam qualquer possibilidade de redenção – e espetacularização – pela arte que constroem-destroem-reconstroem em modo contínuo.

Acorrentado por uma maldição híbrida, de Sísifo contemporâneo que tem o fígado para sempre devorado enquanto busca algum abrigo, Ornellas contrasta longos períodos silenciosos com a exposição de um olhar ao qual nada escapa. Assim, por aqui transita a sua desilusão com um mundo emocionalmente falido, que disfarça mal o fato de se arrastar sob escombros, o assombro com a passagem do Tempo que nos esmaga, a indignação com o sistema político nacional cuja estrutura em metástase é merecedora da sua (nossa) ojeriza. Contudo, ele também concede espaço à celebração da amizade e à procura do seu lugar como uma entidade anárquica, desamparada e errante, oscilando entre o asfalto de Brasília e as suas raízes fincadas no mar da Bahia negra ancestral.

Valendo-se de uma espécie de tetralogia do desencanto que lhe abastece de alimento e água, banha seu corpo com água morna e o acalenta com um sopro rejuvenescedor, toda força criativa do poeta desponta nestas páginas a partir:

1) Da solitude enfurecida tão necessária à sua concepção e que nos arremessa do alto de uma laje batida:


Acordo e questiono o que resta
De dignidade humana em mim
A vida se acostuma à cidade infecta,
Simulando voos de galinha pelo jardim
E nós, amigo, verdade seja dita,
beijamos a boca do lobo
defronte da nossa porta
[…]
Mas – merda, amigo! – por que imagino
um pequeno canto no fim do mundo?
Sempre um pequeno canto no fim de tudo?

2) Do que ele ergue com mão firme mesmo em dúvida permanente sobre a sua arte:

a escrita se tornou a minha muralha chinesa.
como ultrapassá-la, como derrubá-la sem pôr contra mim exércitos imperiais?

3) Do que ele desconstrói com a alma intranquila e que estranhamente nos pacifica:

Daí que se exploda!
Minha sanha é mover-se contra mim mesmo
preparar minha própria carne para o braseiro
deixar ir meus dedos juntos com os anéis
com que edulcoro estes papéis
[…]
Só um idiota preferiria o pó arruinado da memória,
o cheiro do passado,
de madeira úmida & bosta de cupim
caída
ao pé de uma porta
Só mesmo
& esse idiota sou eu,
filho do esquecimento,
cuja memória bastarda me jogam a toda hora

4) Do que ele reconfigura a partir de destroços afetivos aos quais somos solidários:

Bagagem nas mãos, fui para fora, sem saber para onde ir. Viajara no silêncio dos meus próprios olhos fechados. Nada falei.
Nada nunca falei.
Perdi todas as palavras que me definiam. Nem família nem casa,
só o céu em 180º
despejando luz colorida de papel crepom
sobre minha cabeça
que eu tanto queria vazia de tudo a partir dali
.

Em obras (título que traz em si uma sutil ironia escatológica) nos apresenta ainda um artista em pleno domínio da sua expressão poética, de aperfeiçoada linguagem melancólica e exercício máximo de formas ecléticas também presentes em seus dois trabalhos anteriores, Trabalhos do corpo (2007) e Formas de cair (2011). Aqui nos deparamos com inúmeros estilhaços de elevada potência, desses que nos deixam marcas metafísicas, a exemplo de Arte do auterretrato, Travessias, Negativo, Clandestino, f_ ou c_, Impressão do rosto, O sutra da ponte, integrantes de mais um volume expressivo que agora se aglutina à sólida argamassa de Sandro Ornellas. Para erguê-la, ele inspirou-se no material recolhido de sua biografia, paródia mal feita de outra vida suspensa na palafita, e da sua condição involuntária de taumaturgo fez da brita pontiaguda um toco de lápis. Da folha de madeirite, pedaço de papel. E, do caulim, compôs os seus versos mais diabólicos para nos conduzir a um vislumbre: poetas são o contraponto de uma humanidade que nos brinda todos os dias com cenários grotescos. O contrafluxo à face mais horrenda da morte. O contrapasso que nos acolhe ante uma alvorada improvável de dias amenos em época maligna.

A despeito do seu desejo de isolar-se para assistir à combustão derradeira de um mundo inviável, trata-se de um homem-poema acossado em estado perene de construção. Ainda que contradito pela acidez autodestrutiva da qual necessita para reconstituir-se de si mesmo e reinventar-se a cada nova composição, a cada nova encruzilhada que atravessa. Em silêncio.