breno fernandes sobre “dói-me…”

O escritor Breno Fernandes escreveu no Instagram uma breve, mas generosa, leitura do meu Dói-me este mundo de violentas esperanças. Segue abaixo na íntegra:

O novo livro de Sandro Ornellas me parece o bem-sucedido fruto do empenho de um eu lírico disposto a usar as ferramentas próprias do poeta para dar cabo de uma tarefa a princípio esperada de um jornalista ou cronista: registrar o presente. E o aqui-agora se revela, cada vez mais nitidamente, um mundo no qual os desejos de insurreição e reconstrução social são fortes, mas estão sendo apropriados por agentes políticos que na verdade querem recuperar a ordem vigente outrora, num período no qual o mundo era bem pior e apenas poucos tinham direito a viver, enquanto a maioria se ocupava de sobreviver. É tal percepção que está contida nas violentas esperanças que, no título, nos anunciam que essa não há de ser uma leitura sem dor. Mas nem por isso menos prazerosa.

Da devastação ambiental às necessárias máscaras anticontaminação. Da convivência intensa com a morte na pandemia à captura dos nossos desejos e do nosso tempo de vida pelas redes sociais. Esses são alguns temas que Sandro Ornellas trata — e de novo: não com olhar de observador científico, e sim de observador afetivo. Não por acaso, ele faz ser totalmente cabível haver um poema de nome “Convicções” que começa e segue assim…

“Você crê em tudo o que lê e vê?
ou só lê e vê para confirmar
o em que de antemão já crê?
Você ainda crê em algo?
Que o amor te põe a salvo?
[…]”

…cheio de perguntas. E eu acho legítimo e louvável que, ao tentar dar conta de nosso tempo, o poeta demonstre paz de espírito com o fato de nem sempre conseguir entendê-lo. Por vezes o caso é não entender mesmo, mas ainda assim cutucar o presente com o que se tem a mão: a palavra.

E, quando não está perguntando conosco ou para nós, Sandro oferece respostas muito bonitas — às vezes dolorosamente simples e clara — para o que é a vida…

“mas destino é a morte após a vida
e a vida é a obra que sobra da sorte”

…ou para quais são as marcas que a gente carrega por morar ou ter morado nas entranhas de Salvador:

“Salvador, procuro equilíbrio em uma cidade que é só
uma cidade que é só uma cidade que é só agitação
de uma cidade que não salva palavras perdidas
na mesma viagem em que eu parti com meu
excesso de sombra e luz por te percorrer olhos
arreganhados”

E como o aqui-agora é sempre um terreno vasto, no qual zilhões de coisas estão acontecendo, pode ser que, no livro, você encontre algo que desconheça. E pode que isso transforme sua percepção do mundo — simplesmente pelo fato de fazer uma descoberta sobre uma coisa da qual não andava atrás. Foi assim comigo ao tomar conhecimento, num poeminha ready-made de bucolismo gótico, do colibri andino…

“A temperatura à noite
dessas altíssimas terras
desaba a menos de zero
E os pretos beija-flores
empoleirados e eretos
apontam seus bicos
retos para os tetos
afofam suas penas
e se tornam estátuas
em animação suspensa”

Fecho o livro com a violenta esperança de que, enquanto houver colibris andinos a descobrir e a observar, a dor do mundo seja encarável.