Torço para que as editoras cartoneiras tenham vindo para ficar junto da literatura. Além da solidariedade com cooperativas de catadores e da sustentabilidade, elas se adequam no modelo ao qual os poetas (os melhores, inclusive) estão habituados desde sempre: a (auto)publicação a baixo custo. Quero apenas afirmar que este modelo é perfeito para o que muitos tratam como uma forma de “economia criativa” (termo de que não sou muito fã) pós-pandemia: redes solidárias, materialidades artesanais sem luxo, tradicionalismo sem conservadorismo, circulação off market. É isso o que o livro de Nilson Galvão, #nibrotas, editado pela Editora Licuri, me permite de início pensar ainda sem lê-lo.
Quinto livro em onze anos, isso mostra que mesmo um poeta produtivo e editado como Nilson tem de recorrer a expedientes característicos – repito, em todas as épocas e geografias – da clandestina poesia. Além disso, o livro também investe no “localismo” (permitam-me outro clichê-chave) ao abordar desde o título um bairro dos mais característicos da cidade de Salvador: Brotas. Composto de 18 fotografias coloridas e 10 poemas (acrescidos de mais um como marcador), com o mapa do bairro na capa e contracapa, seu conceito também é justo ao propor o diálogo entre imagem e texto, diálogo levado a efeito não apenas pela sequência que criam, mas pela linguagem de ambos. As capturas fotográficas de Nilson dialogam produtivamente com a referencialidade cotidiana de seus versos. E não me refiro às citações ao fim de linha de Brotas, a Rogério Menezes, à av. D. João VI e à foto da estação de metrô do bairro, mas às cenas – que ao fim e ao cabo poderiam pertencer a muitos outros de Salvador. Como o escritor Gustavo Rios, também morador de Brotas, sempre me diz: “Salvador é uma grande Brotas”, já que qualquer ladeira que você suba acaba por te levar ao bairro. Assim também com as fotos, pois ninguém garante que uma janela com vasos de flores, uma baiana servindo acarajé a clientes, uma barraca de frutas na calçada, uma kombi com papelões ou um terreno baldio com lixo sob uma placa na qual se lê “rebanho de misera não jogue” não sejam cenas da maioria dos bairros da cidade. Mas, no discurso do livro, tudo se passa “ni brotas”.
Como quem reconhece o trânsito do bairro nos horários de pico, assim também somos submetidos nos poemas de Nilson a estranhos fluxos prosódicos verso após verso, sempre encadeados por vírgulas, pela sua supressão ou por repetições ilocutórias que marcam a maioria dos poemas: “vem ni mim / ni brotas / diz a piriguete / vem ni mim / ni brotas / diz o boxéu / vem ni mim / ni brotas / diz-que-diz / […]”, ou “a moça brinca com / o bebê e quer saber uma linda / menina e quer saber porque quer saber / de tudo que se passa que passa / […]”, ou “lá no oriente uma evocação / do oriente que é a banca / de yakissoba na avenida / dom joão VI […]”, ou “aqui dentro da tarde / irremediável eu sou / essa tarde irremediável / […] / você / também é a tarde / irremediável”, ou como no último e longo poema “Metempsicose 2.0”, no qual a expressão “poder ser” e algumas variantes (“o que talvez seja”, “o que for”, “o que foi”) gira em falso por especulações sobre pessoas, objetos e cenas cotidianas do bairro, conduzindo o leitor por efeitos de irrealidade e realidade – estranhamente reconhecíveis.
Eu poderia aqui desfiar algumas linhagens da poesia de Nilson, falar de décadas anteriores, poetas daqui e de alhures, relacionar sua linguagem a “movimentos” e “grupos”, mas esse é um exercício que não diz respeito ao livro. Evitar essa forma de ler e (des)legitimar a poesia me parece cada dia mais importante, dado o rumo das nossas políticas socioculturais. Que o leitor, então, faça suas próprias relações. O poeta agradece.