Escrevi um texto sobre o filme Ensaio de Orquestra, de Federico Fellini, para ler em uma roda de conversa, mas revisando-o notei a quantidade de spoilers que ali eu dou para quem não o conhece. Ora, é simplesmente impossível analisar qualquer narrativa sem parafrasear minimamente pontos chave de seu enredo, bem como aspectos gerais ou específicos. Por isso, me perguntei por que cresceu tanto e é levada tão a sério a histeria em torno de se contar sequências inteiras de uma história – seja romance, filme ou série? O que isso significa?
A palavra spoiler vem do verbo to spoil, que significa “estragar”. Ou seja, estraga-se a surpresa em ser exposto ao fim de uma determinada história. Por que se tem a sensação de que se estragou tal experiência? Aliás, será que experimentar uma narrativa se limita a “ser cativado” (no dupla acepção de ‘seduzido’ e ‘escravizado’) pelo enredo que ali se desenvolve? É nessa vontade de “ser cativado” permanentemente pelo que é contado que me parece estar o sintoma.
Penso num ponto nada irrelevante: a aceleração e onipresença de narrativas políticas pelas telas e redes sociais nas atuais sociedades. Ninguém ignora que as timelines criam narrativas muito “cativantes”. Há quem diga que sua rolagem infinita tem o poder de uma droga. Também há quem se autonomeie “curador” de postagens, criando em seus perfis “narrativas audiovisuais e escritas” para sua rede de contatos. Um detalhe é: como não ver nessa “curadoria” de narrativas uma forma de lucrar financeiramente (ou mesmo simbolicamente) com histórias monetizáveis?
Em suma, somos bombardeados por narrativas “sem fim”, e é por isso que acredito que se odeia tanto os fatídicos spoilers, que “estragam” os fins de séries, romances e filmes. Isso é um evidente traço da nossa bovaryzação, pois não sabemos mais diferenciar representação de presença, ficção de realidade – voltamos para dentro da caverna platônica, agora plural, sendo cavernas (eis onde a narrativa terraplanista ganhou espaço). O maior exemplo é a narrativa sem fim (desde 2013 na minha narrativa) do momento político nacional, que tem sub-enredos norte-americanos, russos, latino-americanos, africanos e europeus, tanto quanto enredos locais dentro do país.
Na academia, não há como não pensar nas noções de autoficção (já fora de moda) e campo expandido (atual moda) como esforços teórico-críticos para articular “narrativas ficcionais” a essa série de “narrativas não-ficcionais” envolvendo faits divers e signos conjunturais. Isso na verdade ocorre na literatura pelo menos desde o século XIX (se não recuarmos à cena de D. Quixote encontrando a si próprio como livro sendo impresso numa gráfica) e se sabe que indica a moderna imaginação literária tumultuando as convenções sobre “verdade” e “mentira”. Mas agora chegamos ao ápice desse tumulto, pois não acreditamos mais em “verdade” e “mentira”, só em narrativas (antigamente se dizia “versões”). Eis uma perspectiva que deve ser somada às atuais hipóteses sobre a decadência das democracias.
Não aceitamos que uma narrativa tenha seu fim antecipado, pois não acreditamos que a vida tenha um fim: recusamo-nos a encarar nossa mortalidade, desejamos que prolonguem mais e mais nossas vidas, mesmo que sob aparelhos. Esta, portanto, é a mais nova fase de um pensamento teológico que não aceita o fim da vida sem salvação ou condenação eternas. Engraçado pensar que a tecnologia concretiza um imaginário teológico, mas é o que tudo indica vir por aí: homo deus.
Por isso, a histeria em torno de spoilers sugere que queremos viver (pelas narrativas) um luto cada vez mais impossível de ser vivido (e por isso recusado) na acelerada vida social. Tomados que estamos por tantas narrativas sem fim, as com fim se tornaram lugares para simbolizarmos o que somos incapazes de viver ritualmente. O problema é que – como a autoficção, o campo expandido e outras modas literárias – ritualizamos apenas como moda, isto é: como o fetiche da mercadoria que nossas vidas se tornaram.
Pós-escrito: um amigo leu este texto e concluiu, jocosa e sabiamente, que quem não gosta de spoiler tem medo da morte e consome notícias compulsivamente para não morrer. Bingo!